Olho-te ao espelho da minha solidão. Ficas maior depois de partires a imagem do dia-a-dia porque os pormenores tornam tudo do tamanho da verdade. Estavas no silêncio dos gestos indecifrados, nas palavras mudas que as lágrimas desenhavam na face da tua raiva, no teu corpo abandonado à minha noite sem braços. Tentavas fazer-te notar pelas coisas que eu não via mas que tu pintavas sobre os meus olhos distraídos com um amor feito faca de sentidos perdidos. Eu via-te com um utilitarismo de quem desaprendeu a usar a magia da pontuação, o clique dos adjectivos densos ou a nomear com o dicionário dos amantes jovens. Mas tu não estavas onde a tua imagem ficou.
Estavas inteira à espera do homem que eu já não sei fazer falar. Amas com dor os fragmentos da minha promessa, a consciência a regar com lume a água dos teus olhos. És um incêndio invisível, um remoinho quieto por fora, um grito censurado pela agitação mundana. Dormes a meu lado enquanto viajas pelos caminhos sinuosos da noite escura, as costas do mundo. Vendi-me por um preço imerecido e encantaste-te com a minha especulação, gostavas de acreditar que as pessoas, com amor, fazem dos imóveis a morada das histórias verdadeiras. Mas eu não sabia sentir, não sabia ver o mundo do teu ângulo ambicioso. A geometria dos meus sonhos era rasa e quis prender-me à beleza de uma antítese humana.
Vives uma solidão acompanhada, aquela que nunca te permite regular a respiração, há um espectro que impacienta a esperança na ponta dos dedos. Tentas chegar até mim, mesmo sabendo que entre mim e ti, há todo um mundo maior do que a vida. Mas amas. Acreditas que o impossível é a preguiça dos descrentes e rejeita-la com fúria cega. Que já não é amor ou talvez seja só um amor possível que arrepia pela fragilidade. Nas tuas palavras nunca ouvi, lá dentro, o pedido que me fazias, nódoas negras na superfície da tua vida. Socorro, dizias tu, braços ao alto quando choravas pela noite dentro, a chuva abafava a rouquidão da tua espera.
Não tinha noção que, ficando preso a uma ideia, haveria depois muito trabalho para a tornar numa narrativa em jeito de biografia a duas vozes. Desculpa se só tenho jeito para crónicas onde o meu absurdo ganha contornos solitários, não sei encontrar-me na entrega dos outros. A tua voz, na margem da folha. Usa as minhas palavras, pedias tu, tantas vezes. Mímica transparente. Eu, cheio de nada, e tu a rebentar com o peso de dois, antítese interior. Imperceptível aos olhos distraídos. Duas solidões como duas linhas paralelas perpétuas. Duas presenças à espera de uma realidade embrulhada de possibilidades. Tu não estavas onde a tua imagem ficou e eu vivia com a subtracção de uma alma, com o corpo vazio de um espírito dentro do meu abraço sonhado.
Hoje é o dia em que eu tropecei em mim mesmo, a dormência das minhas pernas fez-me perceber que do chão não passo. O chão duro da consciência perdida na entrega estúpida a este mundo. E, ao cair, numa fracção de segundo senti-me escorregar por entre fotografias de sonhos, por caminhos e gestos por tentar, e abri os braços em direcção à tua imagem, lá no fundo.
"Fiz das costas do mundo os meus olhos e dos meus olhos as costas do coração. Caíste na armadilha que construíste, na face da tua promessa, embarcação de um mar estagnado. O porto da ilusão não é a morada dos amores possíveis."